terça-feira, 24 de maio de 2022

O amor

 


 
O amor está sempre operacional em todo o tempo que é tempo. Porque há outro tempo que não conta. Ou não existe porque não passa de uma ilusão. Há um antes e um depois. E um agora que nunca se fixa. Mas voltando, está sempre perfilado. Pronto a entrar em cena ao primeiro sinal. E quando avança, nada nem ninguém o faz parar. Admitindo que é o amor e não se confunde com paixão.
O amor não faz a guerra nem vive a guerra quando o empurram para a frente de batalha. A guerra é outra. Tempestade interior ou boa sensação que não se explica. Também não interfere na paz. Tem outra missão porque o amor é. É uma coisa puramente abstrata e direcionada para o seu objetivo universal. Não escolhe idades, nem, tão pouco, ideais físicos homem/mulher. Não move montanhas para atingir os fins porque está sempre presente no momento certo para se movimentar. É uma coisa bela. Abstrata. Imaterial. Portanto, não vê. Muito menos ouve. Não se guia por qualquer órgão dos sentidos para que aconteça o que foi destinado a acontecer. Nem pede livro de reclamações se qualquer coisa correu mal porque alguém amou o objeto errado. Também não dispõe do muito controverso sexto sentido. Mas sofre com a intensidade das emoções, principalmente quando estas são ativadas pela força irracional da paixão, a sua principal inimiga que, por vezes, se mascara de forma a confundi-lo. Tem os seus órgãos próprios, age com os seus métodos intuitivos. É eficiente, quase infalível, mas às vezes não acorre quando chamam por ele ou porque a paixão chegou primeiro ou por outro motivo obscuro. É assim que é visto. É o amor. O amor é e está dito.
Neste momento espreita, cauteloso. Nada teme porque a sua base de dados tem todos os ingredientes para o resultado não precisar sequer de prova real. Neste caso, por exemplo, desloca-se, invisível, na areia da praia, dourada, fina, reluzente pela presença da mica, terceiro componente mineral do granito. A escolha do cenário está feita. A esta hora o sol está na vertical, queima, sem piedade, os corpos que não se resguardam, mas não vê nem sente os seus efeitos escaldantes sobre a areia da praia em virtude da sua natureza imaterial. Natureza? Talvez não esteja bem dito. Saiu. Não pode entrar. Está mais preocupado em pôr em campo a primeira avaliação, isto antes de ter segurança para avançar. E para este caso precisa de atrevimento e de ir além do limiar da paixão, a tal inimiga figadal que se relaciona habitualmente com as estafadas nuvens passageiras que também nunca voltam atrás. Mais distante está o limbo das últimas caminhadas, irreversíveis, e não é isso que quer. Ser um amor diferente, tisnado por longas exposições contraditórias que maltrataram o amador e a coisa amada. Mas se tiver que ser, assim será. Não tem outros sentimentos senão o seu e que se chama amor. Age com a lógica de que é dotado e não procura outra coisa senão outro amor gémeo. Por vezes, engana-se. Mas o engano é de outro filme.
Aproxima-se mais e pára. Atingiu o limite. Pressente. Adivinhou. Agora é só esperar. Mas há gaivotas no ar. Oxalá não voem para terra.

Ela troca um olhar dúbio com o seu parceiro, no momento deitado sobre a toalha azul escura. Anormalmente não sopra uma brisa já muito perto da zona de rebentação das ondas.
«Que se passa, amor?» pergunta ela.
Saturação não é. É amor. Porque o amor é. Normalmente dá-se conta por causa de um modo diferente de responder. Tal como parece que vai acontecer. 
Não foi por acaso que pairou no ar uma sensação agridoce, a envolvê-los, como se ela fosse uma libelinha desesperada à procura do parceiro para um momento que dura precisamente um momento. Ou uma borboleta a esvoaçar dentro de si e a fazer-lhe cócegas como nunca teve. Não quis revelar-lhe que "o amor é". Limitou-se a sorrir, admitindo que ainda não chegara o tempo.
«Deixa acontecer.» 
É isso.
«O quê?» 
«Tive um mau pensamento. Só isso.» 
«Esquece.» 
«Sim.»
Portanto, não se apressa para que possa acontecer já. Precisa de ler nas entrelinhas alguns dos seus pensamentos envoltos em dúvidas para poder avançar. Sim. Neste momento está presente outro tipo de amor. Não é louco nem cego e precisa de ser diferente a sua estratégia que definiu atrás. Mas a espera é intolerável. 

"Sinto... estou vazia. O sol aquece-me o corpo. A areia acaricia-mo. Acordei neste momento do marasmo dos sentidos, aquecida agora, não pelo sol mas pelo calor de uns olhos ardentes. Há vulcões incendiários no seu olhar. Mas tenho receio de enganar-me. Será que ele só tem como fim o momento do orgasmo e depois deixa de acontecer? Sou tola. Aqueles olhos não enganam..."

A sua base de dados começa a processar uma sequência longa de símbolos "0,1" e tem que esperar que o software cumpra a sua missão e encontre o algoritmo ideal. Só depois pode ter certezas. Sim. Deve ser um pouco calculista. 
Esqueçam tudo o que foi dito atrás e esperem porque ele também está em stand by. É preciso aguardar o momento certo porque as correntes elétricas do olhar dele sobre ela criaram um fogo incontrolável e sente-se percorrida da cabeça aos pés e não tarda que o coração dispare a mil à hora. Estes sinais do coração são perigosos. Podem deitar tudo a perder.
Matematicamente falando, um mais um é igual a dois. Portanto, os dois corações estão a palpitar e, junta-se-lhes, começando a funcionar, a fantasia do amor. Mas o amor é assim. Se acontece, mesmo que deite tudo a perder, aconteceu mesmo e só uma roleta russa o faz parar. O amor depende da roleta russa. Oxalá o resultado não seja fatal. Haja alguém que tire a bala. 

"Ardo..., volto-me... e encontro no meu espírito a erupção dum orgasmo."

Não foi necessário aproximar-se mais. Colocou-se em estação no sítio ideal para começar a emitir uma espécie de pensamentos para ambos, acreditando logo que o marasmo era aparente e esperava-os uma longa estrada de afirmação. Estava lançado o rastilho.
Deixou-os entregues a interrogações nos olhares, dúvidas para o futuro (felizmente que o amor é e não tem passado, presente nem futuro... porque é tudo) e tentou descobrir como se enquadrava na ação a moldura real das areias finas e reluzentes, das ondas de rebentação violenta que arrastavam consigo mais areias e detritos orgânicos, espuma amarela que beijava sem pudor os grãos de areia e depois afundava-se em parte e a outra parte recuava para as suas origens, negando categoricamente o continuar do beijo. Depois havia o voo das gaivotas. Mais ao fundo, o rochedo majestoso continuava a desafiar os elementos da Natureza que já tinham destruído grande parte da rocha que o ligara em tempos recuados à arriba-mãe, cretácica, no tempo recuado de milhões de anos, arriba de grés amarelo, grosseiro, que saía curiosamente de um contacto suspeito com o calcário argiloso jurássico, mais à esquerda, pleno de majestade. Havia também a torre esguia, sinal de um passado baseado talvez em vigia da passagem ao largo de barcos duvidosos de todas as tonelagens. Mais à esquerda, o mar a perder de vista até à linha do horizonte, imaginária, que limitava o real do limbo misterioso e desconhecido, para lá do qual era proibido passar.
Alongou então com êxito uma espécie de pensamento tentacular. Sem que dessem conta, esse pensamento envolveu-os e o contacto foi feito de imediato com êxito. Mais pensamentos, agora alheios a ele, foram processados em permutas rápidas e impeliram os corpos grosseiros para um outro mundo de atração e carinho. O rastilho estava a resultar.
Então o amor, mesmo cego de sentidos, teve a certeza que ela era a mulher mais bonita que o homem já tinha alguma vez conhecido. A cor dos olhos, castanhos, verdes, azuis, conforme o seu estado de espírito, os cabelos louros, lisos, curtos, o próprio sorriso, a voz doce, tudo era um sinal de bom augúrio. E ela também se sentia feliz com a sua avaliação. Quanto ao ambiente presente em nada desfavorecia o andamento da situação de um homem e uma mulher deitados na areia sobre toalhas azul celeste e azul escura, já envoltos numa auréola romanesca, cimentada e distante de uma hipotética paixão que, como era habitual, em nada os iria favorecer se não fosse fortalecida pela infalibilidade do amor.
Olharam-se perdidos no mundo que foi construído (imaginavam) de propósito para eles. Sinais exteriores, como o sol que lhes bronzeava os corpos, ou o rochedo gresoso que rompera na base e consentira em dar passagem às águas furiosas do mar e que, por vezes, deixavam soltar guinchos suplicantes para que o mesmo mar acalmasse o processo duro de uma erosão inevitável, destruição que avançava,lenta, com o passar dos anos. Ela já não sentia o zero do vazio, nem o tempo do marasmo que imaginava estar consigo. Ardia, sim. Ardia de desejo, à espera do momento mágico. O simples contacto dos corpos incendiava o próprio desejo de se fundirem num só debaixo das toalhas de praia. Eles. Os eternos só para aquele momento.
Ao fundo, a base do rochedo deixou soltar um guincho erótico de apoio, sinal que o mar também estava com os amantes, e penetrava suavemente nas suas entranhas sem usar a força hercúlea extrema dos tempos de invernia. Bem perto deles, a eterna farsa amorosa da espuma a beijar as areias douradas e a mergulhar em parte entre os grãos e noutra parte a recuar em busca da proteção do mar. 
Definitivamente já não era trabalho para o amor que, no momento, flutuava em volta do homem e da mulher, sem os ver, sentir ou amar, porque dispunha apenas da sua base de dados e de um programa pré-definido que resolvia todos os casos por mais difíceis que fossem. A sua missão começara ainda agora e já chegava ao fim, pois os destinos do homem e da mulher estavam entrelaçados. Limitou-se a constatar que estava programado o futuro auspicioso para o homem e para a mulher e que eles não iam precisar de mais encenações de aproximação. Assim, estava de partida e pronto para uma nova cruzada, quiçá mais difícil, ou até impossível se a sua inimiga número chegasse mais cedo. Quase sempre a impetuosidade da paixão fazia arder os corações até que só restassem cinzas. E isso não queria. Porquê? Porque ele era o amor. E o amor é. 
Ia partir sem sequer entender mais uma vez o porquê da eternidade do orgasmo que durava um, dois segundos. No máximo.
Retraiu a hipótese de uma aproximação tentacular, mergulhou virtualmente na zona de rebentação das ondas, lançou o olhar cego sobre o rochedo guinchador, tentou harmonizar-se com o paradigma da espuma das ondas, das areias da praia e dos beijos consentidos, enfim sentir as radiações solares no seu corpo imaterial. Mas 
não teve meios para traduzir o que não podia sentir e não ouviu as palavras que eles trocaram. 
«Isto que sentimos um pelo outro não vale mais que o orgasmo profundo que tivemos em simultâneo?»
«Tens razão, amor. Não consigo passar sem acariciar-te vezes sem conta quando estamos um com o outro. É uma atração que não se explica. O contacto com o teu corpo macio é algo muito forte que não consigo definir. Cega-me, tolhe os outros sentidos e traz-me um novo sentir que não encontro nome para dar.»
«É amor. Não se explica de outra maneira.»
«Tens razão. Mas que olhar é esse?» 
«Sentiste o mesmo que eu?»
«O que foi?»
«Um frio interior. Apareceu de súbito.»
«Mas o dia está muito quente!»
«Deixa. O que interessa é que te amo muito.»
«E eu também. Jura que vamos manter sempre este espírito forte do amor.»
«Curioso, era o que ia a propor-te. Dá-me um beijo longo.»
Que pena aquele amor que queria uni-los não ter esperado mais uns minutos para assistir ao evoluir da obra que foi da sua responsabilidade. 
Já perto de terra deu várias braçadas vigorosas e virtuais e depois deixou-se ficar, deitado na areia, a tentar adivinhar se ia partir antes do tempo, levando consigo o voo aleatório das gaivotas. Talvez ele fosse uma paixão "mascarada" com sinal de ausência de libelinhas ou borboletas.
Porque já não podia voltar atrás, sacudiu a areia do corpo ou isso de corpo e gritou bem alto em silêncio para o vazio que o envolvia: 
«Sou o amor, ou o amor é...?» 


O amor

    O amor está sempre operacional em todo o tempo que é tempo. Porque há outro tempo que não conta. Ou não existe porque não passa de uma i...